Já falei algumas vezes sobre “meus velhinhos”.
E acho que não me canso de falar disso porque mexe demais comigo.
Creio que não esquecerei jamais o dia em que o seu José me fez perceber o quanto eu vivia alheia a tudo o que os envolve, fazendo meu trabalho de maneira mecânica, quase como uma máquina, como todo bom trabalhador neste mundo capitalista.
A partir daquele dia uma nova visão sobre a vida deles surgiu. Uma nova percepção. Uma nova sensibilidade.
Coisas que antes pareciam tão banais, tão corriqueiras passaram a ser importantes e passaram a me tocar profundamente.
Meu dia a dia é cercado por eles. Suas dúvidas, seus anseios, suas alegrias… Quando, durante o expediente, eles chegam e ficam ali conversando, perguntando, só contando suas histórias, mesmo que esteja cheia de trabalho, me sinto mal em não ouvi-los. Afinal, muitas vezes, como me lembrou o seu José, eles só querem ser ouvidos. Nada mais.
Hoje cedo saí para fazer uns exames. Na volta, dentro do ônibus, sentada no último banco vi um casal de idosos, daqueles bem velhinhos, sentados juntos e de mãos dadas, um pouco mais à frente.
Não me sentiria tocada se eles fossem jovens, mas achei uma graça os dois ali, como eternos namorados.
Quando a velhinha olhou para trás, vi que ela era cega de um olho. Fiquei ainda mais concentrada nos dois.
O senhor puxou o sinal para descer e ajudou sua amada a levantar do banco. Nas escadas, desceu lentamente na frente e a ajudou, com calma e extremo cuidado, a descer os degraus do ônibus. Depois seguiram pelas calçadas, devagar, apoiados um nos braços do outro. Meus olhos se encheram de lágrimas.
Os dois ali, tão frágeis, mas tão atentos um com o outro. Um cuidado que é cada dia mais raro de se ver.
Lembrei-me de meus tios-avós.
Eu os conheci em agosto de 2011. O tio Neco estava então com 101 anos. Imagine o que é isso?! Sua esposa, companheira de 80 anos, com 97 anos, estava acamada, com câncer.
A pele dele parecia de papel, frágil, finíssima. Ele já não ouvia direito, mas andava sozinho, sem ajuda de bengalas, andadores, e sorria o tempo todo, e cantava antigas canções da roça para a gente. Fiquei impressionada. E eles cuidavam um do outro, como fizeram por oito décadas. Era ela quem fazia o café dele antes de adoecer. Era ela quem cuidava de tudo antes de precisar que ele cuidasse dela. E ali estava ele, fazendo tudo o que podia por sua eterna namorada.
Não ouvi os dois se lamentarem, apesar de tudo. A única coisa de que ele reclamou foi de não poder mais tocar viola pois sua pele era realmente muito frágil.
Pouco tempo depois, tio Neco faleceu. Recebi com imensa tristeza a notícia, pois depois de tê-lo conhecido, parecia que ele viveria para sempre! Pareceu-me inclusive que viveria mais que eu. A tia Marcolina seguiu-o logo depois. Talvez não pudessem mais viver um sem o outro.
Naquele agosto eu aprendi muitas coisas, que até hoje me guiam. Aprendi sobre cuidado, sobre paciência, sobre tolerância, sobre respeito, sobre ouvir.
Com meus tios-avós, com o seu José, com outros Josés, Oswaldos, Marias, Anas e todos os que atendo e convivo, aprendo muito, não posso negar. Mas estes dois casos – Seu José e Tio Neco e tia Marcolina – me ensinaram que ouvir, muito mais que falar, tem um poder imenso na vida dessas pessoas que estão há muitos e muitos anos acumulando história, só esperando que alguém se disponha a ouvir e, quem sabe, nesse processo, aprender um pouco.