Torneirinha ligada

Hoje foi um daqueles dias bizarros. No ônibus, pela manhã, não sei porquê, esqueci que não devia descer no terminal rodoviário. Só percebi o que estava fazendo quando já estava colocando o pé na escada, para descer. Voltei ao meu lugarzinho estranhando minha mente maluca. Demorei a perceber, depois, que devia puxar a corda pra descer, quando meu ponto chegou. Mas até aí tudo bem, sexta-feira, a gente entende que está dando tilt.

Em poucos meses completo dez anos fazendo as aposentadorias dos servidores da cidade em que moro. Essa atividade não é ruim, mas confesso que estou no meu limite há muito tempo. A exaustão é mental, é física, é emocional.

Às vezes vejo um processo, que o salário final é o salário mínimo, engulo seco, deprimo. Mas sei que, no geral, apesar dos pesares, passo o dia dando boas notícias pras pessoas. E invejando o que elas tem e que eu, talvez, nunca venha a ter. Assim como milhões de outras pessoas nesse país absurdo.

Mas hoje, não bastasse o surto estranho da manhã, tive um atendimento que tirou o resto de estabilidade que eu almejava.

Dias desses, enquanto adiantava os processos de outubro, pra poder tirar minha licença em paz, vi que teria que indeferir um processo devido aos quatro anos de afastamento que a pessoa havia tido anos atrás, durante o qual não houve contribuição previdenciária. Perguntei, no setor, se era possível verificar se a pessoa em questão tinha feito a contribuição facultativa e me disseram que era necessário que ela trouxesse os comprovantes caso quisesse contestar o cálculo. Como estou bastante antecipada, segui com o restante dos processos e só veria esse caso mais tarde.

Hoje, porém, a pessoa viu no sistema o seu indeferimento e foi falar comigo.

Ela ficou arrasada, como era de se esperar. Expliquei o motivo do indeferimento, o que poderia ser feito, enfim, o atendimento de praxe.

Indeferir processos é sempre uma grande merda. As pessoas se programam, estabelecem novos ritmos, sonham com uma nova rotina. Então, eu fico imaginando se fosse comigo. Tudo pronto pra aposentar e de repente chega o “não”. Provavelmente eu teria um colapso. Muitas vezes as pessoas reagem muito bem, entendem, seguem adiante sem grandes problemas. Outras vezes as pessoas veem seu chão desaparecer. E, confesso, nessas horas eu não sei o que fazer.

Meses atrás, uma pessoa muito querida deveria ter se aposentado, mas o entendimento jurídico sobre um dos tempos utilizados para a concessão da aposentadoria mudou e o processo foi cancelado. Quando a decisão chegou a mim, eu senti o peso do universo nas costas. Voltei pra casa sendo esmagada, com tantas dores que só pensava em ser engolida pela terra.

Hoje, estava lá, eu com minha sinusite dando sinal, com um pequeno “não sei onde estou e nem o que fazer agora”, antes das 7 da manhã e a pessoa chega pra saber do seu indeferimento.

Eu não esperava, claro.

Então foi um atendimento doloroso. E quando a pessoa explicou que à época da licença havia pedido informação sobre a contribuição facultativa, que tinham indicado a ela que não o fizesse, que se fosse fazer o recolhimento extemporâneo daria um valor que ela, obviamente não possui e que pediu aposentadoria pois está em tratamento para uma doença grave, eu não sei o que houve, mas tudo pareceu ir ruindo.

A pessoa, naturalmente, começou a chorar. Chorava e chorava e chorava. Eu comecei a tremer. Sentia frio. Não sabia mais o que fazer. A boca seca, não conseguia nem articular mais um pensamento lógico. Meu estômago dava voltas.

No fim, ela me abraçou. Ainda chorando. Ficamos lá abraçadas, com força. Ela foi embora, ainda chorando e eu fui ao banheiro, lavar a cara.

No caminho, colegas me perguntaram o que tinha acontecido. Eu abri a boca pra começar a explicar e comecei a chorar. No início, fraquinho, só umas lagriminhas teimosas que decidiram acompanhar a tremedeira das mãos, a moleza das pernas. Bebi água, lavei o rosto, sentei no vaso e chorei, chorei, chorei.

A torneirinha não queria desligar mais.

Era hora do almoço. Lavei o rosto, saí pra fumar um cigarro e voltar ao normal. Mas não consegui.

Não conseguia mais parar de chorar. Perdi a fome, a cabeça parecia que ia explodir, o estômago dava voltas e mais voltas, as mãos tremiam.

Não sei quando tive a última crise incontrolável de choro como a de hoje. E foi uma coisa altamente estranha pois mesmo vendo coisas engraçadas no face do Boris, mesmo retornando ao trabalho pra distrair, mesmo tentando fazer qualquer outra coisa, as lágrimas vinham. Não pude mais falar no que aconteceu. Fiquei lá na minha conchinha tentando seguir adiante.

Engoli o choro várias vezes durante a tarde, enxuguei as lágrimas várias outras vezes. Lavei a cara tantas vezes que a pele pareceu ficar meio esticada.

Ao fim do expediente, de cara inchada e vermelha, saí mal humorada. A caminho do ônibus, coloquei o óculos escuro pra disfarçar as lágrimas que ainda teimavam em pular pra fora dos olhos.

Fazer cálculos de aposentadoria, no ritmo atual, é massacrante. Diante do cenário macabro que esse país tem apresentado… nem sei como dizer.

As pessoas tem medo, tem raiva. Quem pode corre pra não perder o pouco que tem. Quem não pode sofre, teme, chora.

No meio de tudo isso, estou eu. Sem saber direito como reagir, o que fazer, o que dizer. Mas também com medo, dor, pena, raiva e muitas, muitas e muitas lágrimas. Pra dar conta de tudo, agindo meio como máquina. Até que alguém chega com sua dor e diz que não, você não é uma máquina. Você é de carne, e sangra. Como tantos outros nesses dias de terror que temos vivido.