Trabalho em casa, normalidade e outras coisas

Num mundo em que a covid-19 nem era conhecida, eu passei uns meses trabalhando em casa pra uma empresa. Foi uma coisa muito louca e me deixou sonhando que, já que eu não ganhava na loto, bem que eu podia trabalhar de casa pra sempre.
Ah, o custo de manutenção é todo meu? Sim. Eu sei disso. O empregador repassa pra mim tudo isso (energia, água, desgaste de máquina, papel higiênico, café, etc etc) e não recebo aumento nenhum no salário. Mas o fato de não ter que sair do meu esconderijo, de não pegar ônibus lotado, de não ter que acordar ainda mais cedo, de não passar o dia ao lado de gente detestável, de não carregar marmita, de não ter um lugar decente para passar a hora do almoço, enfim, tudo isso pesa e muito pra mim.
Na minha casa reina o silêncio.Sei que vivo uma realidade privilegiada, pois tenho um espaço na casa pra ficar trabalhando (e, antes, estudando, em paz) além de os únicos outros seres na casa serem os meus gatos. Não há gritos, não há conversa quando preciso me concentrar. Ás vezes os gatos surtam e fazem uma bagunça louca? Sim. Eles, inclusive, adoram gritar quando um chefe liga. 
Aí veio 2020. E o ano começou com minha saúde escorrendo pelo ralo. Um problema atrás do outro. E, em março, algo que o médico disse ser bronquite, Pronto. No meio da pandemia. Fora a rinite, a fibromialgia e um quase enfarte. Pacote completo. Grupo de risco. Trabalho em casa.
Aos poucos as coisas vão se organizando, uma rotina diferente. Passar o dia com meus trapos, comer melhor, dormir melhor e só sair se não tiver jeito. Antes era uma opção, agora uma necessidade. Dias e dias e dias e dias. Até perder a noção do tempo.
É gostoso estar em casa, na minha casa, com minhas coisas, meus ácaros.
Mas trabalhar em casa também tem um lado cruel e extramente cansativo(para além dos repasses já mencionados): alguns pensam que você está de férias eternas; outros pensam que você deve estar disponível 24h com um lindo sorriso na cara.
Também é uma grande merda saber que são poucos os que tem esse privilégio: poder ficar em casa, poder trabalhar em casa, poder comer em casa, PODER COMER, TER UMA CASA. Isso e o desgaste de saber que 98 mil pessoas morreram porque afinal de contas, são só vidas, né, e a economia?
As forças vão sumindo. O desânimo vai tomando conta, a raiva vai aumentando (cortisol mandou lembranças pro coração). É muito difícil.
Aí você vê as pessoas levando a vida numa boa, com festas, saracoteando no comércio, indo a bares, como se nada, NADA, tivesse acontecendo.
A angústia só aumenta.
O cardiologista falou que é normal ter crise de ansiedade no isolamento. Foi complicado explicar que o isolamento eu tiro de letra, que na verdade eu fico muito em paz assim. Explicar que o que me enlouquece é saber que tem gente indo a festas, que tem gente tirando sarro dessa merda toda, que minha mãe trabalha em hospital e não tem todos os equipamentos necessários à sua proteção, que meu pai de quase 82 anos não aguenta mais ficar em casa e, por isso, vai jogar malha com os amigos e tocar viola com eles, que os colegas que estão trabalhando estão sendo expostos por outros colegas que não acreditam que “essa gripezinha” mata e, afinal “se matar, o que se pode fazer, todo mundo morre, né”? Que as pessoas fazendo isso contribuem para que essa situação não se resolva. Que a gente não tem ministro da Saúde. Que a Educação está indo pro saco. Que o país está desgovernado e disseminando ódio e desinformação. É isso que vai acumulando, acumulando e acumulando até explodir. 
Isso o que me deixa ansiosa e me impede de estudar, de ler, de descansar, de dormir, de estar menos intranquila. É isso e saber que poucos se importam, que poucos levam a coisa a sério.
É saber que a cada vez que se olha as notícias vem algo terrível: mais mortes, inércia do congresso, má vontade generalizada.
E aí me falam em novo normal. Novo Normal??? O que é isso? O.QUE. É. ISSO?
Quase seis meses.
Quase cem mil vidas.
Quantas famílias sem emprego?
Quantas família sem comida?
Quantas família sem casa?
Que novo normal é esse?
Trabalho em casa. Por algumas horas consigo simplesmente me desligar de tudo e fazer meus processos só ouvindo o tec tec do teclado.
Trabalho em casa e sobra mais tempo pra, de repente, ter crises de ansiedade.
Trabalho em casa e posso chorar de medo, de frustração, de raiva.
Trabalho em casa.