Delicadeza

Eu sempre fui uma pessoa meio chorona. Culpo o meu ascendente, claro.  Aí, em alguns momentos da vida a coisa parece sair do controle e até uma pessoa descascando batata me arranca lágrimas.

Eu monto processos de aposentadoria e pensões há quase oito anos. É uma coisa mecânica, já vai meio no automático. Talvez a prática, a quantidade, o pouco tempo, as milhares de outras coisas que preciso fazer mais ou menos ao mesmo tempo sejam os culpados pela “frieza” que vai se instalando. Talvez seja só o meu signo mesmo.

Mas tem dias em que eu olho o valor final do benefício e os olhos enchem de lágrimas. Como uma pessoa que trabalhou a vida toda, que só se fodeu, se desgastou, perdeu os melhores anos da vida cumprindo horário em uma tarefa que em muitas e muitas vezes não gosta de fazer, pode chegar à velhice ganhando aquilo? Será que precisa pagar aluguel? Será que vai conseguir pagar as contas básicas do mês? E se ficar doente? E daí pra chorar de verdade é um pulo.

Dou uma passadinha no banheiro, lavo a cara, começo a ouvir um heavy metal no fone de ouvido, invento uma piada, qualquer coisa pra poder “não ver” essa realidade nojenta e não ficar chorando no trabalho. Ou depois do trabalho.

Na minha rua tem um “doidinho”. Ao longo do dia ele vai de um lado pro outro da rua muitas e muitas vezes. 

Quando me mudei pra cá ficava pensando no que será que ele tinha que o fazia andar tanto, aparentemente, sem nenhum motivo.

Quando ele passa às vezes falo bom dia, boa tarde, o que for, e entro.

Ele, de vez em quando, passa falando sozinho, alto, meio bravo, coisas que mal dá pra entender. Às vezes pede um cigarro pra quem tiver na rua.

Desde que o Selvagem se mudou pra minha calçada e parou de implicar com o moço “doidinho”, ele vem falando com o Selvs também. Passa aqui na frente, resmunga, repete as broncas que dou no Selvagem: “guarda esse brinquedo”, “vai pra casinha”, “não tira o pano da casinha”. Em algumas ocasiões espio pela janela só pra ver se o Selvs tá tacando o terror na calçada. Na maioria dos dias não tem nada, às vezes o Selvs nem tá ali. Mas o moço fica falando. Quase sempre não entendo o quê.

Uma coisa que sempre achei estranha é que o moço parece bem inofensivo, mas os vizinhos parecem ter medo dele. Eu, que tenho todo ser humano como uma ameça em potencial, não fico muito atrás.

Hoje era mais um dia em que eu estava tentando guardar o brinquedo do Selvagem, e era feita de tonta por ele, que agarra o brinquedo e sai correndo que nem louco. Uma amiga protetora passou na rua e começamos a conversar. Sobre animais, claro. Conversa vai, conversa vem, eis que o “doidinho” surge. Passou, eu falei oi, a moça se afastou um pouco.

Como sempre ele foi até a avenida, sabe-se lá pra que lado, o que fez, de repente ele reapareceu. Trazia na mão uma florzinha minúscula. Estendeu a mão pra mim e disse que tinha me trazido a florzinha. Que era pra eu plantar que ela ia virar uma “planta grande”. O resto não entendi direito.

A moça e eu ficamos em silencio, meio constrangidas, meio perdidas. O moço foi embora.

Fiquei com a florzinha na mão e foi só então que percebi que não via as pessoas falando com ele, ou não se afastando dele. Me deu vontade de chorar. Pela delicadeza do gesto dele, por trazer essa florzinha, pela solidão que de repente pareceu que ele sente.

Passado alguns minutos, tá lá o moço de novo. Escorou na grade do meu portão e começou a falar um monte de coisa que não entendi nada. A moça que estava comigo se despediu e foi embora. Selvagem entrou no meu quintal com o brinquedo na boca e deitou no chão. E o moço falou que o Selvs era de lua, pois às vezes ficava bonzinho, às vezes ficava bravo com ele. E eu com a florzinha na mão, sem entender muito o que ele falava, não sabia o que fazer e fiz o que sempre faço: falei “hmmmm”.

É, sou dessas que não sabe o que falar, nem como reagir e acha “eita” uma expressão divina. Interações sociais não são o meu forte.

O moço foi embora, Selvagem saiu e correu na calçada com o brinquedo e eu tranquei o portão. Com a florzinha na mão.

Não sou pessoa de flores. Acho bonito e só. E que ela fique  lá no canto dela. Entrei e joguei a florzinha no lixo. Voltei. Peguei a florzinha de novo e coloquei na prateleira da sala.

Não gosto de flores. Mas aquela ali parecia tão errado jogar fora que doeu. Doeu pela delicadeza do ato, pela simplicidade da coisa. Pela dureza com que temos que encarar a vida, pela máquina que querem que nos tornemos e pelo choro que nos obrigamos a engolir. A delicadeza, às vezes, nos faz lembrar dessas coisas…