Linguiça e Selvagem

Linguiça e Selvagem ou Selvagem e Linguiça. é uma historinha doida, seja qual for a ordem das coisas. Em abril, um cachorrinho apareceu em meu portão e resolveu que ali seria sua nova morada.

O mocinho simplesmente resolveu ficar. Primeiro eu trouxe uma caixa para ele não deitar no chão. Então apareceu um pano pra deixar  a caixa mais gostosa. Depois, uma vizinha que é protetora independente de animais, perguntou se não poderia colocar uma casinha ali, na calçada mesmo, pra ele poder se abrigar. Assim, Selvagem, o cachorrinho preto e branco, ganhou uma casa.

No começo foram muitos momentos de estresse. Eu colocava um pote de comida e água pra ele, de repente os potes sumiam. Saía na calçada e esbravejava, xingava. Selvagem se sentia importante. Estavam defendendo seus pertences.

Ele se sentia mesmo o dono do pedaço, e foi impossível não morrer de rir quando ele saiu correndo, latindo bravo, atrás do carteiro e do moço que veio colocar a conta de água na minha caixinha. Selvagem sabe que não gosto de receber coisas ruins!

Então, um belo dia, percebo que Selvagem não está sozinho. Havia encontrado uma companheira. Era só o que faltava! A minha calçada estava virando um abrigo. Ok. Eu me resignei. Agora havia a companheira que não desgrudava dele. Ele, sempre muito gentil, só vinha se ela também vinha. Só ia se ela fosse. Linguiça pareceu um bom nome pra ela. Foi o casamento do ano! 

Linguiça, a mocinha colorida, assustada como o quê, foi aos poucos percebendo que seu companheiro a protegeria e mostraria em quem ela podia confiar.

Já era recebida por ela com saltos e lambidas, com brincadeiras e festas. Uma alegria sem fim, mesmo pra uma pessoa que não quer cachorros. Assim os dias foram seguindo. De manhã colocar ração, trocar o pote de água, dar bom dia, fazer carinho. Isso depois de tratar os gatos. Os dois ganharam uma casa maior e muito confortável, de uma outra protetora. Podiam viver juntos e quentinhos. Ficavam abraçadinhos.

Mas uma fêmea é sempre um perigo: um perigo quando entra no cio e acaba gerando vários filhotes que, assim como os pais, acabam em situação de rua; um perigo porque os cachorros da rua entrariam em conflito com Selvagem, enfim. Os vizinhos já vinham encher o saco por conta da presença da amiga do Selvagem. 

A protetora independente fez o cadastro pra a castração de Linguiça. De três a quatro meses de espera. No mínimo. Putz. Vou ter que me agilizar. Espreme aqui, ali e mais um pouco e ok. Vou castrá-la. Entro em contato com várias clínicas, indicadas pela protetora, que atendem esses casos de rua. Marcada a cirurgia, era preciso tomar os cuidados de praxe: jejum, principalmente.

Depois de uma luta, consegui pegar a Linguiça e deixei-a na garagem. Selvagem ficou emputecido. Mas era preciso. Qual não foi minha surpresa ao ouvir uns gritos e perceber que a danada se espremeu entre as grades e fugiu? Corri atrás dela, chamei, implorei. NADA. Nenhum dos dois quis conversa.  Desisti. Estressá-la, na véspera da cirurgia, não era muito legal.

Sábado de manhã. Chuva. Um agradinho na mão e a captura da Linguiça! Nem comer o agrado ela pode. Foi só uma forma de atraí-la. De enganá-la. Dentro da garagem, coloquei a guia do Joaquim nela e a mantive presa até a hora de sair para a clínica. No carro, foi uma mocinha exemplar. Tranquila, embora curiosa. Selvagem seguiu o carro correndo enlouquecido. Ela olhava pela janela.

Na clínica, o atendimento. Mais ou menos 3 anos, quase dez quilos. Aparentando boa saúde. Um cliente a elogiou, tentou brincar com ela. Outros cachorros chegavam, ela tremia mas nem um único rosnado ela soltou. Sempre em pé, a meu lado, recebendo seus carinhos na cabeça, pra que soubesse que eu estava ali e que iria buscá-la mais tarde.

Mas aí as horas foram-se passando e quando o telefone tocou, já me aprumei para buscar a convalescente e mostrar a ela o cantinho que havia arrumado pra ela passar a próxima semana. Mas a pergunta me pegou de surpresa: “Oi, a senhora pretende colocar a Linguiça pra adoção? É que um cliente se interessou e gostaria de ficar com ela. Como a senhora disse que ela mora na rua, pensei que de repente fosse bom pra ela ser adotada.”

CLARO! SIM! Mas e o Selvagem? “Selvagem?” O Companheiro dela. Ela tem um amiguinho, são muito unidos. Poderia ver se a pessoa não quer ficar com os dois? “Bom, posso ver. Vou perguntar e te retorno, pode ser?” Sim.

Bom, não quiseram o Selvagem. Só mesmo a Linguiça. Que talvez continue se chamando Linguiça porque acharam engraçado.

Selvagem ficou, mais uma vez. Mas agora, triste. Não saiu do portão, mesmo debaixo de chuva. Chorava, latia. De certo me acusando por o ter separado de sua querida Linguiça.

Ah, como já chorei. Sempre pensava em como seria quando eu me mudasse. O que aconteceria com eles. Para onde iriam. Eu sabia que um podia sumir, morrer, sei lá. Que alguém podia passar e levar um deles embora. Mas não queria ter sido eu a separá-los. Dói demais.

Selvagem chorando no portão faz com que me sinta pior. Então resolvi que não vale a pena o bichinho ficar triste e molhado. Deixei ele entrar. Ele deitou na caminha que foi de Linguiça por algumas horas e permanece lá. Pensativo.

Esperando, talvez. Esperando o retorno de sua amada (que, se tudo correr bem, não acontecerá, porque agora ela tem um lar), ou melhor, esperando que ele mesmo, agora, consiga um lar pra chamar de seu. Mas pode deixar, amiguinho. Eu e as muitas pessoas que já te conhecem estamos buscando esse lar pra você!