Um dia de merda

Eu cresci achando que o serviço público era uma maravilha. Todo mundo falava isso. Todo mundo elogiava o serviço público com seus vencimentos e boa vida.

Para reforçar ainda mais a ideia, conheci, ao logo da vida, muitas pessoas que estavam no serviço público se dando muito bem.

Gente que trabalha num local tranquilo, que tem um salário bem bacana. E, venhamos e convenhamos: ninguém mais tem as facilidades que o servidor público tem: finais de semana garantidos, feriados prolongados, hora certa pra entrar e sair, entre outras coisas. Isso representa, creio eu, a realidade de muitos dos servidores públicos do país.

Mas após passar num concurso a primeira coisa que aprendi foi que eu não tenho sorte. A segunda foi que o salário era uma merda. A terceira é que, como não tenho sorte, caí num setor onde, não raro, era preciso trabalhar até as dez da noite, sábados, domingos e, vejam só, feriados!

Além das desgraças mais à vista tinha também o fato de que no serviço público eu deixaria de acreditar num monte de coisas. Nas pessoas, por exemplo. Na justiça, também. Política? Vira piada ou lamentação. Para conseguir alguma coisa – e aqui essa coisa pode ser entendida como um lugar menos ruim para trabalhar, uma gratificação ou simplesmente não ser tratado como um cão sarnento (neste caso vale uma ressalva: eu e mais um monte de gente trata os cães sarnentos com mais educação, respeito e carinho do que muitas pessoas no serviço público costumam tratar umas às outras) – é preciso ser apadrinhado por alguém influente ou viver puxando o saco de alguém e fingindo não ver as trapaças do dia a dia.

Também é preciso, evidentemente, estar no topo da cadeia alimentar. Se você é serviços gerais, meu bem, sinto muito. Você, com muito esforço, é tratado com dignidade. Desconfiam que você rouba, desvia materiais de limpeza, comida e sabe-se lá mais o quê. Mas se você tiver um cargo melhor, mais alto e ainda souber a quem bajular… Ah sim, aí o serviço público é uma maravilha!

Eu não sou serviços gerais e muito menos estou perto do topo da cadeia. Sou parte da galera do administrativo. O povo que cumpre ordens, que abaixa a cabeça, que ouve merdas, insultos e todo o tipo de barbaridade e ainda ganha mal. Um pouco menos mal que os serviços gerais. Mas temos um pouco mais de respeito. Hierarquicamente estamos melhor posicionados. E isso, sem dúvida, faz com que as humilhações sejam mais… maquiadas, digamos.

O serviço público é o lugar ideal da carteirada, do “você sabe com quem está falando?”, da bestialidade humana baseada na porcaria de um cargo qualquer e de influências podres. É um lugar onde se pode conhecer a alma das pessoas. Dê uma função gratificada a qualquer coitado: primeiro ele para de reclamar e apontar os erros da administração; depois ele passa a engolir o choro, a raiva, o medo e o que mais mandarem engolir; por fim, muitos acabam se apoiando na funçãozinha, no status adquirido, na ascensão hierárquica ilusória e passam a tratar os “subalternos” como lixo. Ou pior ainda. Só pra tentar mostrar quem manda. Ou tentar acreditar nisso.

Dependendo de quem você é na ordem do dia, você manda. Você tem seus desejos atendidos. Você descumpre regras, regulamentos, leis, até, caso seja preciso. Pra te satisfazer, evidente.

Ouse estar no chão da fábrica pública! Ouse, então, se misturar com essa gente!!! Ainda não descobri o que é pior!

É claro que minha visão é fruto da experiência. Da minha experiência. Ou da falta de conhecimento do que é política, como alguns adoram me dizer. Ou talvez, ainda, de uma visão deturpada do que é a realidade. Mas, infelizmente, é o que vejo.

Existem exceções? Claro. Eu já aprendi isso lá nos remotos dias das aulas de gramática: para toda regra há exceções. Saudades de meus professores de português. E de todos os professores. Por que em sala de aula é possível ter outra visão das coisas. Mas a realidade costuma ser uma grande porcaria mesmo. Triste.

Pior é que o silêncio comprado, imposto, as amarras de uma ditadura invisível, as correntes que nos colocam sutilmente, tudo isso matam um pouco todo dia.

Vivemos numa espécie de bolha, uma ilha de falsa segurança funcional e financeira. Achamos que estamos protegidos, que as coisas – crises, desemprego, fome, dor – não nos atingirão. Só que nossa bolha vai ficando cada vez mais embaçada. É o resultado de nossa respiração cansada. E triste.

Nos agarramos às seguranças ilusórias para justificar uma série de coisas, começando pela nossa inércia e acomodação. E engolimos, todos os dias, o gosto amargo de uma vida de mentiras.

Um dia isso acaba.