A noite

A noite sempre me pareceu a melhor hora do dia. O silêncio, a tranquilidade, a temperatura que costuma baixar.  Muitas e muitas vezes nem percebo que a madrugada corre solta, pois me perco em meu mundo particular, lendo um livro, vendo um filme, conversando com os gatos e debatendo, com eles, os meus sonhos amalucados.

Mas a noite também é  o momento do medo, do coração disparado, dos suores, das incertezas, do choro descontrolado, da vontade louca de dormir e não conseguir.

Essa noite tensa tem sido minha realidade. Ela sempre se apresenta quando os pelúcios adoecem. E o Boris, no alto de seus 15 anos, tem demonstrado sua fragilidade.

Nos últimos dias tem sido um vai e vem enlouquecedor. Veterinária, laboratório, casa. E o coração na mão.

Boris tem uma característica incrível: toda vez que ele não está bem, ele me acorda. Me avisa. “Mamãe, tem algo estranho”. E assim, passamos as madrugadas atentos, um ao movimento do outro.

Observo sua respiração, sigo-o ao banheiro, ele me segue pela casa. Vejo temperatura, reações, coloração. Dou água na mamadeira, ofereço comida na boca.

Nas últimas duas madrugadas passamos horas assim. E o resultado, durante o dia, para mim, é sempre um desastre. Metade por não ter dormido o mínimo necessário, metade por estar dividida entre as obrigações tediosas da vida adulta e o que está acontecendo em casa.

Hoje, ao chegar em casa ofereci coisinhas que meu branquelo gosta: rúcula, danete. Algo que o fizesse sair do estado meio entorpecido em que ele se encontra. Depois,  medicado, Boris comeu um pouco. E então comeu meio descontrolado. E aí murchou novamente.

Eu sei que é de um egoísmo tremendo de minha parte esperar que ele fique pra sempre a meu lado. E fui obrigada a ter uma conversa séria com ele. A mesma que tive com a esposa dele, em junho, antes de ela partir.

“Eu te amo demais, meu filho, mais que tudo. Meu coração é você. Meu pensamento é você. Minha alma é você. Mas eu preciso que você saiba, que você entenda, que meu amor não permite que você sofra, que permaneça a meu lado sem forças. Faça o que você tiver que fazer pra ser feliz, mas em hipótese alguma se esqueça o quanto eu te amo.”

Lágrimas escorrem forte, ousadas, quentes e raivosas. Mas eu precisava falar isso em voz alta. Precisava que ele ouvisse, que soubesse.

A vet me disse: “haja naturalmente, como se tudo estivesse bem, pois eles percebem nossos sentimentos e isso influencia o comportamento deles”. Excelente lição. Eu mesma repito isso pras amigas em situações semelhantes. Funciona? Comigo, não.

Porque a cada respiração diferente, a cada olhar triste, a cada movimento diferente, meu coração aperta, dói. São 15 anos! São milhares de histórias. São viagens, são planos feitos, horas de brincadeira, cuidado. Não é assim: “fica calma”. Não! É desesperador.

E o Boris sempre foi um grude. Aquele gato que não se importa de estar fazendo 200 graus celsius. Ele quer ficar em cima de você, abraçado, o pelo grudado na pele suada. Ele não se importa. Ele olha com aqueles olhos azuis como a me dizer: “eu não ligo, você liga?” Não, eu não ligo. Ao contrário. Me habituei tanto a esse contato que, se por acaso, ele resolve fazer outra coisa na hora em que vou dormir, eu levanto e busco o danado pra deitar comigo, senão o sono não vem. Fora de casa, em viagens, rolo até cansar, pois me falta o mais importante: aquele corpo quente, aquelas patas a pressionar meu rosto, aquele ronco inconfundível.

Só que hoje ele não quis ficar comigo. Subiu na cama, deitou um pouco e se afastou. Ficou bem na beirada. Fiz que não tinha visto. Era pra agir “normalmente”, com calma, “como se não estivesse acontecendo nada”. Aí ele desceu da cama e foi pro escritório. Deitou num lugar em que não costuma deitar. Chorei.

Tirei-o de lá e levei-o pra cama. Observei a respiração, a temperatura. Ele deitou. Depois ficou bravo e me mordeu. Foi deitar no sofá do escritório, que virou seu ninho de preguiça nos últimos meses.

Pensei em ler. Mas pra ler é preciso ter um mínimo de concentração. Eu só consigo pensar no Biscoito. Decidi apagar a luz. Apaguei. Silêncio, escuridão. Mil histórias surgindo, o coração galopando enlouquecido, as lágrimas escorrendo. Melhor levantar. Andei, sentei, levantei, deitei. Nada.

“Boris, tá tudo bem?” Nada. Continua apático. O olhar cansado, abatido.

Cacete, o que eu faço? Tirá-lo de casa é sempre um parto. O stress que ele passa é pior pra condição dele. Mas e se de repente eu tiver deixando de fazer algo que seja crucial? Medo. Mais medo. Mais dor.

A cada linha, a cada tec tec do teclado, olho pra ele.Respira lentamente. Não ronca. Baba um pouco.Levanto, limpo sua boquinha, vejo a temperatura. Me critico, estou sufocando ele e ele vai ficar bravo. Isso é ruim. O que eu faço?

Cara, o Biscoito tem 15 anos. 15 Anos não é muito. É pouco. É quase nada. Temos muito o que fazer. Ele sabe? Quem foi que disse que eles precisam ficar assim? Tão fragilizados?

A noite avança. A temperatura parece subir. Suo terrivelmente. Sono? Se perdeu por aí. Ouço os cachorros na rua, as motos e carros que passam, portas de vizinhos que batem. Ouço coisas estranhas lá fora, devem ser as baratas. Nem ligo. Porque meu medo, hoje, é muito superior ao medo que tenho delas. Meu medo é mais profundo, é corrosivo.

A noite continua. É cedo ainda. E isso é o que aumenta o medo. Pois a qualquer momento posso perder meu tesouro mais precioso. Ou pode começar um novo dia em que me darei conta de como sou idiota e medrosa e mais um monte de outras coisas bestas.

Enquanto a noite chega, desejo com força que o dia novo comece e que eu possa rir de minha paranoia. E que lá no futuro, eu possa olhar pro Biscoito e falar pra ele: “lembra daquela noite em que a mamãe surtou? Você queria testar meu coração, né?” E ele retornará com aquele olhar lindo que sempre me chama a penteá-lo, ou a jogar a sacolinha pra ele.

E assim terminaremos a noite cansados de brincar. Abraçarei meu ursinho branco e dormiremos mais uma noite. À espera de um novo dia com mais histórias pra contar.